NOSSO SISTEMA É FEITO PARA O POVO NÃO PARTICIPAR
*Entrevista com Jorge Almeida, professor de Ciência Política e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Veja aqui a íntegra do depoimento do cientista político Jorge Almeida dado a Regina Bochicchio (jornalista) e publicado em A Tarde.
Já virou lugar comum dizer que o brasileiro é despolitizado, que esquece em quem votou. Mas é um fato. Como o senhor encara o fenômeno?
Tem vários elementos que contribuem para isso. Tem a questão histórica. A história brasileira é de autoritarismo, de pouco incentivo de participação política, de elites políticas que sempre relegaram ao segundo plano a participação popular. A política é vista de forma elitista e isso cria uma cultura política na sociedade de pouca participação.
Então essa é a nossa tradição política. Desde o processo que constitui a independência do País, que se deu a formação da República, a chamada revolta de 30, que também teve grande participação oligárquica no processo.
Mesmo o direito de voto só se constitui de forma completa depois da Constituição de 1988. Só aí vamos ter o sufrágio universal que chega aos analfabetos. Esse é o primeiro elemento a se considerar. Segundo lugar, nós temos hoje no Brasil um sistema político feito para o povo não participar, na minha opinião. A democracia liberal, que é para votar de quatro em quatro anos, supõe uma autonomia completa dos eleitos pelos eleitores. Supõe que o povo não tem condições de decidir, só de escolher quem vai decidir. Essa é uma concepção liberal clássica.
Questões de classe e de educação formal também têm peso, não?
O aspecto histórico cultural tem tudo a ver com o elemento social. As leis no País em geral são voltadas aos empresários. As regras políticas são voltadas para os que têm recursos. Isso se dá também em função do tipo de financiamento de campanha eleitoral, que é privado, e que dá condições de o empresariado investir pesado no sistema eleitoral.
O sistema permite que aqueles que têm recursos materiais, assessorias, possam influenciar a vida política durante todo o processo. E o povo fica afastado. Esse elemento está relacionado ao poder econômico.
Mas você chamou a atenção para a educação formal. Quem tem educação formal básica mais sofisticada, em tese, tem condições de ter mais informações, mais possibilidade de escolha de um candidato.
Mas muita gente supostamente de formação cultural elevada também age da mesma maneira: não acompanha politicamente, se satisfaz com o estado de coisas. E eles não têm as condições porque as instituições não permitem.
Se a gente tivesse, por exemplo, um processo político que, em primeiro lugar, desse condições para que todos os partidos e organizações tivessem condições mais igualitárias de disputa…
A reforma política então…
Isso só vem com reforma política e financiamento público de campanha. Fala-se muito em série de outras medidas que envolvessem uma mudança do sistema eleitoral para um sistema de voto distrital ou formas de cláusula de barreiras que dificultassem a vida dos pequenos partidos. Acho que para a realidade brasileira são negativas.
A melhor forma de você garantir uma participação plural é manter o sistema proporcional com financiamento público de campanha e com maior possibilidade de decisão política dos eleitores, ou seja: plebiscitos, referendos…
Muitos reclamam porque dizem que os partidos pequenos são legendas de aluguel, que o sistema mais restrito dificultaria isso. Mas a gente vê que os escândalos não envolvem nenhum pequeno partido, são todos grandes partidos.
Todos os grandes partidos que estão governando hoje e os que estavam governando antes. Os problemas da democracia no Brasil não estão relacionados aos pequenos partidos.
Até que ponto os veículos de comunicação têm papel importante no processo da participação política do povo?
É preciso uma democratização dos meios de comunicação.
Temos meios muito concentrados em poucos grupos empresariais, famílias e grupos políticos e, evidentemente, que isso reduz muito o que se chama de imparcialidade. Nós não tivemos processo de democratização dos veículos e isso cria dificuldade para que os meios sejam instrumentos de controle da política. Eles controlam quem querem controlar, no momento que querem controlar e, efetivamente, não servem como meio de controle da sociedade. Não são espaços públicos de controle da política. Continuam sendo espaços privados de controle da política de quem tem recursos, servem aos próprios interesses.
Em relação à participação política associada às novas tecnologias, o que ocorreu no Egito é sintomático de que os meios interativos são poderosos para a interferência do cidadão na vida pública, não é?
Tecnologia por si só não resolve nada. Por mais que sejam avançadas, interativas, as novas tecnologias disponíveis, elas por si sós, não vão resolver o problema da política, não vão resolver o problema da democracia.
Da mesma forma que não são as técnicas de marketing que são responsáveis pela demagogia. Não foram as técnicas do marketing que inventaram manipulação política, demagogia.
Nem foram as técnicas de interatividade política, internet e as diversas redes construídas em torno delas que vão resolver o problema da participação política. Mas são ao meu ver instrumentos importantes para isso desde quando não sejam ações políticas que nasçam e morram dentro das redes virtuais, dentro do ciberespaço.
Se elas tiverem contribuindo de alguma forma com a mobilização da sociedade civil nas ruas, teremos condições de reverter esse papel. Aqui em Salvador aconteceu a chamada “revolta do buzu”, a de 2011, que começou no twitter, no orkut e gerou mobilizações de rua. Salário mínimo, por exemplo, se tivéssemos uma participação real da sociedade, nós teríamos a possibilidade de ter resultados políticos maiores.
De que forma, a população poderia ser chamada a opinar em questões econômicas, por exemplo?
Por que o povo não pode decidir, por exemplo, o limite da propriedade rural? Porque não pode decidir… agora está em discussão no Congresso, o Código Florestal… por que não pode ser levada a decisão num plebiscito? Porque quando vai se fazer a privatização de uma grande empresa isso não pode ser decidido pelo povo? Então eu acho que, evidentemente, não se pode colocar toda questão num plebiscito. As grandes questões estaduais e municipais… poderiam, sim… o PDDU (Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano)… Se o PDDU fosse votado com participação popular dificilmente teríamos uma votação na calada da noite, a toque de caixa, atropelando tudo, pois quem estava decidindo lá eram as grandes empresas imobiliárias, estavam fazendo lobby para a decisão e não o povo com a sua participação política.
A capital baiana vive uma série crise financeira, na avaliação de estudiosos. Se houvesse participação política da população o que poderia ter sido evitado ou feito em Salvador, na sua opinião? No caso de Salvador, tem problema orçamentário real que só seria resolvido enfrentando o problema da chamada dívida pública.
Porque a maioria do que se gasta é mais para pagar juros da dívida pública do que em investimentos. Isso já cria uma limitação. O povo não foi consultado para saber se deve ser paga essa dívida pública. O problema não é só da participação política, mas do conjunto da política. Por outro lado se nós tivéssemos um processo de orçamento participativo mais amplo e efetivo na prefeitura – não como manipulação, que é o que está existindo hoje, inclusive em Salvador chegou a existir orçamento participativo, mas não teve nenhum intercâmbio real. Tivemos, na verdade, no Brasil somente duas grandes cidades onde existiu orçamento participativo razoavelmente amplo que viabilizou resultados políticos e materiais e que resultou em participação da sociedade que foram Porto Alegre e Belém, principalmente Belém onde 100% do orçamento foi colocado para ser decidido pelo orçamento participativo. Eu acompanhei o processo em 2004. E quando ia o orçamento para a Câmara já passava por isso. Isso cria um constrangimento, não se eliminamos vereadores, mas leva a um processo em que os vereadores não podem deixar de levar em conta a manifestação popular.
Ou seja, é um controle antes da decisão e não que começa depois. Além disso, a população indicava os fiscais do orçamento participativo para monitorar se as coisas estavam caminhando corretamente.
Mas implementar isso é um problema de vontade política. Porque isso significa que o prefeito e os vereadores, de alguma maneira, e os secretários da prefeitura, estão abrindo mão e entregam essa decisão à mão do povo.
Fonte: Jornal A Tarde – *Regina Bochicchio (jornalista) – EDIÇÃO DO DIA 20.02.2011 – Especial – Página 18
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